José foi assaltado. Levaram o carro dele. Ao chegar em casa de táxi, ele imediatamente assumiu a culpa pelo roubo: “Eu dei bobeira, não deveria ter parado naquele semáforo”. Maria foi estuprada e quase morreu. Ao prestar depoimento, ela deixou bem clara sua responsabilidade pelo episódio. “Eu vacilei, não deveria ter ido comprar pão sozinha”. Um ladrão arrancou o telefone celular das mãos de João enquanto ele atendia uma ligação. Ele – o João, e não o ladrão – assumiu total culpa pelo crime: “Eu não sei onde estava com a cabeça quando fui atender uma ligação no meio da rua”. Maria foi morta durante um assalto. Ela gritou e acabou levando um tiro. Por ocasião de seu enterro, Maria foi condenada por todos os presentes: “Que estupidez dela ter gritado! Todo mundo sabe que durante um assalto o melhor é ficar em silêncio.” Mário, um dedicado policial militar, foi morto a tiros por traficantes do morro no qual morava. Seus familiares, entrevistados, por um jornalista, o recriminaram duramente: “Ele sempre foi cabeça dura, nunca quis esconder a farda quando voltava para casa.” No mesmo morro, Paulo, um líder comunitário, foi esfaqueado até a morte pelos mesmos traficantes. Seus amigos o criticaram ferozmente: “Que falta de juízo, procurar a polícia para denunciar que o crime estava dominando o morro.”. Marcos teve sua loja assaltada, e quase levou um tiro. Seus empregados reclamaram dele: “Que estupidez, deixar aquele monte de mercadorias expostas na vitrine.” Joel entrou em um subúrbio com o caminhão da empresa para entregar pacotes de biscoitos nos bares de lá. Após ter tido os produtos e o caminhão roubados, e quase ter sido morto, foi despedido por seu chefe: “Que sujeito burro, ir com o caminhão lá naquele bairro sem pedir licença para o líder do tráfico local.” E é assim, de exemplo em exemplo, todos já parte do nosso cotidiano, que vamos chegando a uma verdadeira “rotina do absurdo”. Aqui no Brasil é tão normal um cidadão ter medo de andar pelas ruas, é tão comum um policial ter que esconder sua profissão para não morrer, é tão usual pessoas terem que pedir permissão a traficantes para subir em morros e é tão rotineiro abrir-se mão da cidadania mais básica que já não causa surpresa as vítimas estarem se transformando em culpadas pelos crimes. Diante desta tenebrosa realidade, patrocinada pela fraqueza e falta de recursos materiais e legais das nossas instituições, talvez já não nos cause surpresa ver um rabo abanando um cachorro.
Texto: Desembargador capixaba Pedro Valls Feu Rosa.
*Estado omisso, povo sofrido. JL.
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