Quando era um bebê, minha mãe fez algo que alterou o
modo como meu cérebro se desenvolveu. Algo que melhorou minha capacidade de
aprendizagem, de resolver enigmas e de executar múltiplas tarefas ao mesmo
tempo. Um dia, esse ato talvez até proteja meu cérebro da senilidade. O que foi
esse truque? Ela começou a falar comigo em francês.
Novas pesquisas sugerem que falar duas línguas pode
ter efeito profundo no modo como pensamos. O aprimoramento cognitivo é apenas o
primeiro passo. Memórias, valores, até a personalidade podem mudar, dependendo
da língua que estou falando. É quase como se o cérebro bilíngue abrigasse duas
mentes independentes.
A opinião sobre o bilinguismo não foi sempre tão
positiva. Desde o século 19 pedagogos alertavam que a prática confundiria as
crianças e as impediria de aprender corretamente uma das línguas ou a outra. Na
pior das hipóteses, essa educação poderia prejudicar o desenvolvimento e
reduziria o QI. Hoje, esses medos parecem não ter fundamento. Sim, indivíduos
bilíngues tendem a ter vocabulários ligeiramente menores em relação a
monoglotas nos idiomas que falam e às vezes demoram um pouco mais para
encontrar a palavra certa para cada objeto. Mas um estudo da década de 1960
feito no Canadá revelou que a habilidade de falar dois idiomas não prejudica o
desenvolvimento em geral, pelo contrário. Os psicólogos Elizabeth Peal e
Wallace Lambert, da Universidade McGill, descobriram que os indivíduos
bilíngues, na verdade, superam os monoglotas em 15 testes verbais e
não-verbais.
Infelizmente, esses resultados foram ignorados por
quase todos os pesquisadores da época. Apenas nos últimos anos o bilinguismo
recebeu a atenção que merece. O interesse renovado acompanhou inovações
tecnológicas, como a espectroscopia de infravermelho próximo funcional, uma
forma de diagnóstico por imagem que funciona com um monitor portátil observando
os cérebros de bebês sentados nos colos dos pais. Pela primeira vez, os
pesquisadores puderam analisar os cérebros de recém-nascidos em seus primeiros
encontros com a linguagem.
Usando essa técnica, a neurocientista
norte-americana Laura Ann Petitto, da Gallaudet University, descobriu uma
diferença fundamental entre bebês que crescem ouvindo uma ou duas línguas. De
acordo com a teoria mais difundida, os bebês nascem “cidadãos do mundo”,
capazes de diferenciar sons de qualquer idioma humano.
Quando chegam a um ano, acredita-se que eles tenham perdido essa capacidade e se concentram exclusivamente nos sons de sua língua-mãe. Isso parece verdade para os monoglotas, mas o estudo de Petitto, publicado em maio deste ano, descobriu que as crianças bilíngues ainda mostram um aumento de atividade neurológica quando ouvem línguas totalmente desconhecidas ao final de seu primeiro ano. Petitto acha que a experiência bilíngue impede que a criança perca a capacidade de entender sons de outros cantos. O fato ajuda as crianças bilíngues a aprenderem outros idiomas pelo resto da vida.
Quando chegam a um ano, acredita-se que eles tenham perdido essa capacidade e se concentram exclusivamente nos sons de sua língua-mãe. Isso parece verdade para os monoglotas, mas o estudo de Petitto, publicado em maio deste ano, descobriu que as crianças bilíngues ainda mostram um aumento de atividade neurológica quando ouvem línguas totalmente desconhecidas ao final de seu primeiro ano. Petitto acha que a experiência bilíngue impede que a criança perca a capacidade de entender sons de outros cantos. O fato ajuda as crianças bilíngues a aprenderem outros idiomas pelo resto da vida.
Só o
que interessa
- Outra vantagem do cérebro de bilíngues foi descoberta em 2003 por
Ellen Bialystok, psicóloga da Universidade York de Toronto. A pesquisadora
pediu a um grupo de crianças que identificasse quais frases de uma sequência
eram gramaticalmente corretas. Ambos os tipos, monoglotas e bilíngues,
enxergavam o erro em frases como “maçãs cresçam em árvores”, mas as diferenças
apareciam quando analisavam frases sem sentido, como “maçãs crescem em
narizes”. Os monoglotas, desconcertados pela ideia ridícula, não conseguiam
reconhecer que a sentença não continha erros gramaticais, enquanto os bilíngues
davam a resposta certa.
Com base nesse e em outros estudos, Bialystok defende que os cérebros de
bilíngues passam por melhorias no chamado “sistema executivo” do cérebro, um
conjunto de habilidades mentais que dá capacidade de bloquear informações irrelevantes.
Essa vantagem seria a responsável por eles conseguirem se concentrar na
gramática e ignorar o sentido das palavras. A característica também os ajuda a
passar de uma tarefa para outra sem ficar confuso.
O sistema executivo é fundamental para praticamente tudo que fazemos, da
leitura à matemática e até dirigir carros. Logo, melhorias nesse aspecto
resultam em maior flexibilidade mental. As virtudes do bilinguismo podem até
alcançar nossas habilidades sociais. Paula Rubio-Fernández e Sam Glucksberg,
ambos psicólogos da Universidade de Princeton, nos Estados Unidos, descobriram
que indivíduos bilíngues são mais capazes de se imaginar no lugar dos outros,
pois têm mais facilidade de bloquear informações que já conhecem e se
concentrar no ponto de vista alheio.
Ginástica mental - Mas por que falar dois idiomas torna o
cérebro bilíngue tão focado? Para descobrir isso, a psicóloga Viorica Marian,
da Universidade Northwestern, nos EUA, usou monitores de movimento dos olhos
para registrar o foco de voluntários enquanto realizavam uma série de
atividades. Em uma delas, a pesquisadora enfileirou alguns objetos em frente a
indivíduos bilíngues em russo e inglês e pediu, por exemplo, que “pegassem a
caneta”. Os nomes de parte dos objetos escolhidos soam parecidos nas duas
línguas, mas têm sentidos diferentes. A palavra russa para “selo” é parecida
com a palavra em inglês para “caneta”. Apesar dos voluntários sempre entenderem
a pergunta, o monitor mostrava que eles davam uma olhada rápida no objeto
errado (o selo, neste caso) antes de escolher o correto (a caneta).
Esse gesto quase imperceptível revela um detalhe importante do cérebro
bilíngue: nos bastidores, as duas línguas estão sempre competindo pela nossa
atenção. O resultado é que quando os bilíngues falam, escrevem ou escutam o
rádio, o cérebro está ocupado, tentando escolher a palavra certa e inibindo o
mesmo termo da outra língua. É um teste difícil de controle executivo, o mesmo
tipo de exercício que encontramos em programas de “treinamento cerebral” vendidos
por aí.
Não demorou para os cientistas imaginarem que essa ginástica também poderia
ajudar o cérebro a resistir aos efeitos da velhice. Afinal, há evidências que
outras formas de exercício cerebral criam uma reserva cognitiva que protege a
mente da deterioração causada pela idade. Isso foi mostrado quando Bialystok e
seus colegas coletaram dados de 184 pessoas diagnosticadas com demência, metade
das quais eram bilíngues. Os resultados, publicados em 2007, foram
surpreendentes: os sintomas surgiram quatro anos mais tarde entre os bilíngues
em relação a seus colegas monoglotas. Em 2010, eles repetiram o estudo em
outros 200 indivíduos com Alzheimer. Os sintomas começaram a se manifestar
cinco anos mais tarde entre aqueles pacientes que eram bilíngues.
Outra língua, outra atitude - Além de fortalecer os cérebros,
falar um segundo idioma pode ter um impacto profundo sobre o comportamento.
Susan Ervin-Tripp, da Universidade de Berkeley, na Califórnia, estudou a
questão na década de 1960, quando pediu a um grupo de falantes de japonês e
inglês que completassem um conjunto de frases em duas sessões separadas:
primeiro em um idioma, depois no outro. Ela descobriu que os voluntários
tendiam a usar finais bastante diferentes em uma língua e outra. Por exemplo,
dada a frase “amigos de verdade devem...”, os participantes completavam com
“ajudar uns aos outros” em japonês, mas com “ser honestos” em inglês. Os
achados levaram Ervin-Tripp a sugerir que os bilíngues utilizam dois canais
mentais, um para cada idioma, como duas mentes diferentes.
Diversos estudos recentes parecem apoiar essa teoria das duas mentes (veja mais
deles na página ao lado). Uma explicação é que cada idioma traz à mente os
valores da cultura que vivenciamos enquanto o aprendíamos, explica Nairán
Ramírez-Esparza, psicóloga da Universidade de Washington. Em um estudo recente,
Nairán pediu que mexicanos bilíngues avaliassem a própria personalidade em
questionários em inglês e espanhol. É sabido que a modéstia tem um valor
cultural mais alto no México em comparação com os Estados Unidos, onde a
assertividade é sinônimo de respeito. O idioma das perguntas parecia ativar
essas diferenças. Quando questionados em espanhol, os voluntários eram mais
humildes do que quando a pesquisa era apresentada em inglês.
Apesar dos avanços recentes, em se tratando do impacto do bilinguismo, os
pesquisadores podem estar vendo apenas a ponta do iceberg. Muitas perguntas
ainda estão sem resposta. Uma das principais é se um indivíduo que foi criado
monoglota poderia obter os mesmos benefícios ao aprender outra língua. Em caso
positivo, é difícil pensar em motivo melhor para o ensino de língua
estrangeira.
Fala-se muito sobre as dificuldades enfrentadas por quem tenta aprender um novo
idioma na idade adulta, mas as evidências sugerem que o esforço vale a pena. “É
possível aprender outro idioma com qualquer idade e falá-lo fluentemente. Nós
conseguimos ver os benefícios para o seu sistema cognitivo”, diz Marian.
Bialystok concorda que os aprendizes adultos conquistam uma vantagem, ainda que
o aumento de desempenho tenda a ser mais fraco do que entre os bilíngues.
“Aprenda um novo idioma com qualquer idade pelo estímulo mental”, aconselha.
“Essa é a fonte da reserva cognitiva.” Por ora, sou grata por já ter superado
esse desafio. Minha mãe nunca poderia ter adivinhado quanto suas palavras
mudariam meu cérebro e o modo como vejo o mundo, mas tenho certeza de que valeu
o esforço. E por tudo isso, não posso deixar de dizer: Merci! CL
*Estudos mostram que bilíngues têm vantagens no
aprendizado, estão mais protegidos contra a senilidade e podem até raciocinar
de forma diferente em cada idioma. JL
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